Petróleo e Gás
Novo Marco Regulatório do Gás Natural (Lei nº 14.134):
Solução de problemas estruturais ou apenas uma etapa do processo?
O título desse relatório já anuncia o entendimento que temos com relação à aprovação do novo marco regulatório do gás: é uma etapa importante, mas não soluciona os complexos problemas inerentes a esse setor. Serão necessárias novas regulamentações complementares, regras para distribuição e, principalmente, mecanismos que estabeleçam parâmetros para as competências federais e estaduais no segmento de distribuição, principal gargalo para atender as expectativas de um livre mercado.
Resumo.
Para começar, é importante explicar os fundamentos da nova lei: o texto permite que empresas com sede no Brasil possam atuar nesse mercado por meio de autorização da ANP Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis e não mais por concessão. No modelo anterior, uma empresa interessada em investir no setor precisaria vencer um leilão da ANP, enquanto no novo regime, de autorização, basta apresentar o projeto e esperar o aval da agência. Se houver mais de uma oferta, haverá processo competitivo entre as companhias. O objetivo das mudanças é criar condições para investimentos, ao permitir acesso aos participantes do mercado aos gasodutos e, assim, desconcentrar a atuação quase monopolista da Petrobras no setor.
Contexto.
O gás natural tem elevada importância como potencial combustível para promover a transição para uma economia de baixo carbono, já que é o combustível fóssil que emite a menor quantidade de poluentes. Por isso, é considerado uma fonte de energia essencial para os países honrarem seus compromissos ambientais, e o novo marco contribui nessa direção.
Expectativas.
Estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) apontam que, até 2030, o país deve quase triplicar a produção de gás natural, saindo dos atuais 50 milhões para 147 milhões de metros cúbicos/dia, graças ao crescimento da produção na camada do pré-sal nas bacias de Campos (RJ) e de Santos (SP).
O mercado estima que investimentos relacionados somente à expansão da oferta de gás natural sejam da ordem de R$ 60 bilhões, sendo R$ 10 bilhões em projetos previstos e R$ 50 bilhões em projetos indicativos, importantes para a expansão do setor. A EPE ainda prevê quatro milhões de empregos em cinco anos e acréscimo de 0,5% de crescimento ao PIB nos próximos 10 anos.
Assim, a mudança do regime de concessão para o regime de autorização para a implantação de gasodutos de transporte facilitará a expansão da rede existente, ainda pequena, se considerado o tamanho do país. Mas esse não é um caminho linear e automático.
Impactos na cadeia produtiva.
O setor industrial é o principal consumidor firme de gás natural no Brasil, respondendo por cerca de 35% do consumo anual de 2006 a 2018. Portanto, em conjunto com o elétrico, o setor de gás exerce importante papel para a ponta demandante.
As indústrias química, cerâmica, siderúrgica e de papel e celulose respondem por dois terços dessa demanda, considerando o consumo energético, cogeração de eletricidade e uso como matéria-prima. Lembrando, ainda, que o uso não energético é feito pela indústria química na produção de fertilizantes nitrogenados e de metanol. Uma forma de complementar a demanda firme de gás natural é por meio de termelétricas, principalmente aquelas com menor grau de flexibilidade. No país, a base do sistema de geração é composta principalmente de fontes renováveis, com o gás natural funcionando apenas como sistema reserva.
Financiamento.
O BNDES pretende atuar na articulação e financiamento de infraestrutura a ser compartilhada e no desenvolvimento do mercado consumidor. O banco lançou um projeto chamado “Gás para o Desenvolvimento”, onde detalha a estratégia para o setor.
Com distribuição do investimento por vários agentes, espera-se uma economia de escala e redução do risco dos projetos, o que deve favorecer a construção de infraestrutura compartilhada, permitindo acesso de mais campos de produção a gasodutos de escoamento, com consequente redução dos níveis de injeção do gás natural nos reservatórios.
Esta ampliação da oferta contribuiria para o dinamismo e a competitividade do mercado, possibilitando a redução do preço ao consumidor final. Mas, como trataremos a seguir, há diversas barreiras que precisam ser endereçadas antes de observarmos a tão esperada redução nos preços.
Principais críticas e desafios.
Ao longo do período de discussão do projeto de lei, diversos apontamentos foram feitos na Comissão de Minas e Energia (CME), e algumas das preocupações que entendemos mais pertinentes não foram sanadas na versão final recém sancionada. Lembrando que o assunto se iniciou em 2013, com o PL 6407/2013, separamos quatro tópicos de atenção:
1) A excessiva concentração na necessidade de capital privado. Alguns deputados apontaram desde o início que mudanças estruturais usualmente são acompanhadas de investimento do governo, e isso não está previsto na lei, nem é esperado para as regulações complementares, o que pode fazer com que parte dos investimentos previstos não se materialize, caso o capital privado concentre seus investimentos apenas nos projetos com maiores retornos e menor risco.
2) A depender de como for constituída a regulação pela ANP para a metodologia de cálculo da tarifa máxima de transporte, vide artigo 13, § 3º da lei, ela pode fazer com que o transporte no modelo de entrada-saída ocorra encarecendo a tarifa de retirada nas regiões mais distantes do ponto de injeção do gás. Com isso, haveria favorecimento dos consumidores da região Sudeste, já que ela compõe o maior mercado e é a maior produtora de gás.
Esse cenário alimentaria desigualdades regionais e colocaria dificuldades para trazer investimentos para outras localidades.
3) A quebra do monopólio da Petrobras é uma importante etapa, mas o modelo segue contando com as distribuidoras regionais estaduais, que possuem concessões de longo prazo (que podem chegar a até 30 anos), o que sugere prováveis monopólios regionais.
Consequentemente, questionamentos tributários, dadas as diferenças nas cobranças de impostos estaduais, bem como ações judiciais podem complicar a implementação da concorrência em alguns estados. Já existem distribuidoras regionais entrando com ações de embargo por entenderem que a revisão da regulação estadual “fere o acordo bilateral celebrado entre as concessionárias e o poder concedente” (caso da Naturgy, no RJ).
4) As distribuidoras afirmam que é fundamental a existência da figura de um “Operador nacional do gás natural”, algo que acabou não sendo contemplado no texto. A falta de um regulador independente coloca excessivo peso em um modelo de código de rede, que pode deixar lacunas. Nas palavras Augusto Salomon, presidente da Abegas, em entrevista à epbr:
“Deveria ter um ONS do gás olhando não necessariamente o despacho, mas quem entra e quem sai nas operações e quem deixou de entrar”.
5) Em um artigo no Valor, o professor Luís Eduardo Duque Dutra (UFRJ) aponta que, além das dificuldades relacionadas às características do gás (dificuldade de transporte e armazenamento), o projeto envolve transformar atuais monopólios em oligopólios, e que isso traz preocupações com meio ambiente, proteção do consumidor e preços (já que o gás passa por diversos elos da cadeia para agregar valor).
Além disso, características locais podem limitar a propagada redução de preços, tanto por conta da atual matriz energética brasileira (no Brasil, quase não há carvão para ser substituído, como ocorreu na Europa e EUA), bem como a necessidade de criação de novos mercados de consumo. O professor espera impactos em um prazo mais longo (a partir de 4 anos) e lembra a situação do monopólio da Petrobras, quebrado há 20 anos, mas cuja prática em diversos segmentos ainda é monopolista.
Ele também compara a situação norte-americana, onde realmente se conseguiu um mercado pulverizado e competitivo, com a da Europa, onde o impacto nos preços foi bem mais limitado, e que, a depender do modelo brasileiro, podemos ter um impacto muito menor e diluído ao longo do tempo, ao contrário do que se propaga ao se falar em “choque do gás”.
Como conclusão, vale apontar que, além dos desafios citados e esperados com as mudanças nas condições infraestrutura de escoamento, armazenamento, transporte e distribuição, existe a necessidade de desenvolver novos consumidores, tanto na indústria, quanto na termogeração de energia elétrica e no comércio, e no uso veicular, principalmente caminhões e ônibus. Porém, na medida em que o gás natural compete diretamente com outras matrizes energéticas, é necessário que os custos comecem a baixar para que novos projetos sejam desenvolvidos.
A ABRACE (Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres) aponta que, a depender das condições de implementação, os preços do gás podem cair da média histórica de US$ 14 por milhão de BTU para uma faixa entre US$ 5 e US$ 9 por milhão de BTU (a faixa inferior seria possível apenas caso não houvesse as tarifas nas distribuidoras estaduais, que equivalem a cerca de US$ 3 por milhão de BTU).
Em nosso entendimento, mesmo que não seja possível chegar a um patamar tão reduzido de preços, a lei de fato abre espaço para um ambiente mais competitivo, desde que implementada com regulações adequadas por parte da ANP e dos estados. Assim, ainda que a probabilidade de um “choque do gás” seja remota, conforme discutimos acima, há condições para que esse mercado cresça em relevância e atraia investimentos, dada a abertura que o texto traz, em conjunto com uma tendência global em se discutir modelos econômicos com menor pegada de carbono, o que favorece o gás natural enquanto matriz energética e, por consequência, segmentos que possam dele se utilizar, como siderurgia, petroquímica, fertilizantes, vidro, cerâmica e GNV, entre outros.
Fontes: ABEGAS, ABRACE, BNDES, EPBR,
FIRJAN, Valor Econômico e BB Investimentos.